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  • Foto do escritorBruna

Quem? Eu?

Há alguns anos, quando ainda alimentava outro blog, contei sobre a minha dificuldade em escrever em primeira pessoa. Nunca me sinto muito à vontade – e até mesmo sincera – quando preciso vestir a roupa do eu. Ao contrário do nós. Ser nós é seguro, divertido, é saber que tem alguém te apoiando ali, nas mais variadas e absurdas bobagens que tu estejas pensando, dizendo e despejando na folha de papel (ou na tela do computador). Até aquele texto, em que eu confessava algumas manias minhas, eu só tinha sido eu para os poucos personagens que criara para umas historinhas curtas e bobas. Já tinha, é claro, escrito textos opinativos, mas essa coragem de falar absurdos sem estar amparada por um nós é uma virtude dos adolescentes e, naquele momento, a minha adolescência já passara fazia uns anos. Sobrou a covardia de falar apenas sobre eu. Mas eu ainda não gosto de escrever nesta nem desta primeira pessoa. Ou não gostava.

 

Ontem, eu li um ensaio sobre as dores de um pesquisador que, estudando há alguns anos sobre a urbanização das favelas de São Paulo e, agora, sobre o empreendedorismo social nessas comunidades, começou a questionar o seu local de fala na própria pesquisa, já que não é empreendedor e, também, não mora nem nunca morou em uma favela. Respaldado por autores de áreas como Antropologia e Ciências Sociais, ele faz excelentes reflexões sobre o colonialismo arraigado na nossa forma de produzir ciência e sobre o afastamento que frequentemente impomos entre nós e o nosso “objeto de estudo” quando, na verdade, deveríamos buscar aproximação e tratá-lo não como objeto, mas como sujeito. Leitura simples, fluida e julgo fundamental.

 

Fora colonialismo, decolonialismo e espoliação urbana, eu não conhecia nenhum dos outros conceitos que Guilherme, o autor, traz em seu texto, tampouco conheço os autores com quem ele dialoga para construir as suas provocações. Escrito de outra forma, elas correriam o risco de serem pouco palatáveis para alguém de fora da área como eu, mas (sorte a minha!) ele escreveu um ensaio e não um artigo. Ele escreveu sobre eu. As suas treze páginas, embora poucas, poderiam ter sido consumidas amargamente, no entanto, foram docinhas. Uma delícia! Perceber essa intimidade brevemente criada com o colega pesquisador – e não com Formicki (2022) – e com um assunto que eu não conhecia, lembrou-me um outro texto que li há uns dois anos, dessa vez, um artigo sobre um assunto que eu também não conhecia.

 

O artigo foi escrito por Juliana Brandão e é fruto da sua dissertação em Arqueologia. Nele, ela conta, em formato storytelling, a história de Marieta e Josefa, duas meninas que foram pacientes do Hospital de Neuro-Psiquiatria Infantil de BH e que, segundo a narrativa de Juliana, teriam sido amigas. Enquanto explica como as meninas foram parar no HNPI e se conheceram, a autora vai introduzindo outras pesquisas e pesquisadores sobre o lugar, sobre arquitetura manicomial e sobre Arqueologia da Arquitetura. A história é sobre Marieta, Josefa e o lugar, contudo, se a gente estiver atento, é, também, sobre elas: Marieta, Josefa e Juliana. As três personagens criaram um laço que vai se atando a cada linha e que faz ser possível se emocionar com um texto acadêmico. Tá tudo lá: o resumo, os objetivos, o referencial teórico, a metodologia e as conclusões e, mesmo assim, emociona. Falta isso na academia. Falta emoção, eu, eles, nós. Tudo bem explícito.

 

Meus últimos dois anos foram dedicados a escrever um amontoado de palavras sem eu ou nós. Eu não existo nas minhas orações, o que existe é um sujeito indeterminado. Eu é que não sou. O medo, a falta de jeito e o desconforto em expor esse eu  parecem ter desaparecido (ou estão desaparecendo, continuamente) depois de tanto tempo de verificando-se e observou-se. Parando para pensar, não me admira sofrermos tanto com Síndrome de Impostor na área acadêmica. Afinal, quem sabe quando nós poderemos ser eu ou nós nos nossos próprios trabalhos?

 

EU não sei. Mas também não era essa reflexão que eu esperava fazer quando comecei a escrever este post. Queria dizer que, por causa do distanciamento que as regras da escrita acadêmica impuseram às minhas últimas “produções”, talvez, eu tenha sentido esta necessidade de falar mais sobre eu, mesmo sem ter muito o que dizer. De escancarar uma impressão que eu tive, mesmo tão longe da adolescência (porém, com muito mais cuidado e respeito). Antes daquele texto, o das manias, eu só protagonizara as minhas próprias histórias na infância, quando eu escrevia no meu diário dos 101 Dálmatas como tinha sido a escola e se eu tinha brigado com a minha irmã ou levado uma bronca da minha mãe. É engraçado – e assustador – voltar a fazer isso agora, publicamente.

 

 

@mohammadtakhsh

Devido a uma nova mania ou hábito, vou te deixar as referências do artigo e do ensaio que citei seguindo a norma da ABNT. Boa leitura!

 

BRANDÃO, Juliana. Marieta e Josefa no prédio da loucura: uma arqueologia dos espaços manicomiais. Revista de Arqueologia, [S. l.], v. 32, n. 2, p. 239-255, 2018. Disponível em: https://revista.sabnet.org/ojs/index.php/sab/article/view/596. Acesso em: 3 jul. 2024.

 

FORMICKI, Guilherme Rocha. Objeto de estudo ou sujeito de diálogo? E epistemologia favela-pesquisador. Revista Tempo, Espaço e Linguagem, [S. l.], v. 13, n. 1, p. 185-199, 2022. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/tel/article/view/20129. Acesso em: 3 jul. 2024.

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